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  20:03

 Fonte: Google Imagens

No final do século 20, comum era ver por Campo Maior (PI) um fluxo de passantes por nossas belas ruas de calçamento irregular. Dezenas de bicicletas transitavam nas estradas de piçarra vermelha. Por raro asfalto urbano, transportes circulavam nas avenidas da região dos carnaubais. Os pedestres tinham nas sombras das casas e árvores como consolo de quem vivia a pé. Os ciclistas possuíam a cadência a seu favor. Carros e motos traziam-nos a modernidade dos grandes centros urbanos: velocidade, conforto e acidentes graves.

Hoje o campo ainda é maior, com planícies alagadas no inverno e latifúndios que agradam aos olhos de futuros condomínios de luxo da cidade pobre. Pedestres e máquinas dividem os espaços no tráfego das manhãs de segunda-feira engarrafada. Vez ou outra um bode, um cachorro, uma vaca circulam pelo centro comercial com a maior preguiça do mundo, zombando de nossa condição humana e racional.

Sinal verde: no tempo da bicicleta

Barato, ecológico e saudável. Assim foi a vida a pé da humanidade. Vida que ninguém quer mais de volta. Os campo-maiorenses já vivíamos com presa de chegar a algum lugar: fugíamos todos principalmente de um escaldante sol sanguíneo (à Salgado). Feliz do ser humano que inventou a roda, movido pela preguiça de andar. Em Campo Maior da década 1990, quando aqui me acheguei, toda gente possuía ao menos uma bicicleta para circular pela vizinhança, levar o filho à escola, seguir para o trabalho.

As crianças adoravam brincar com uma bicicleta. Antes o presente era namorado numa vitrine ou panfleto de loja. Não custava barato, mas os pais amam os filhos que amam os presentes. Criança sem bicicleta não é bem uma infância completa. Depois acontecia o ritual das primeiras pedaladas: pais nervosos, crianças apreensivas; rodinhas traseiras apaziguavam a tensão de todos. Inevitável era a primeira queda e a primeira raladura, de preferência no joelho. Nada que o afago de mãe não curasse. Quando ganhava uma Monark ou uma Calói, a criançada fazia questão de sair pelo bairro a exibir sua liberdade infantil.

Naquela década e anteriores, é claro, a paisagem do trânsito era preenchida pelas bicicletas. Ainda que sob um sol de 40 graus todo lugar parecia perto em cima de uma delas. Fosse a casa de um amigo, o bairro da namorada, a rua de um parente distante, tudo levava poucas pedaladas e muito suor. Acidentes entre ciclistas, pedestres e carros já existiam – somos peritos em não enxergar o mais fraco – porém, esses casos não eram graves em sua maioria. A bicicleta fazia parte da vida local e ditava o ritmo daqueles dias de tranquilidade morosa. A saúde pública também era atingida pelas duas rodas: a cidade não possuía tantos obesos, uma vez que a magrela colocava todo mundo numa malhação coletiva e necessária.

Sinal amarelo: no ritmo das motos

No final dos anos 90 as motos chegaram transformando o ritmo da cidade para sempre. Conforto e praticidade seriam o carro-chefe das motos. As concessionárias deixaram os comerciantes locais em apuros: a população preferia comprar uma moto a deixar as contas no comércio em dias. Em pouco tempo as ruas tornaram-se delas, das Hondas, Yamahas e Suzikis. Com uma moto nas mãos a cidade ficou pequena e o universo finito. Surgiram os mototaxistas para a alegria quase geral. Entre os jovens, quem tivesse uma Honda Biz era o bam-bam-bam do colégio.

Em noites de farra medonha, bêbados faziam zigue-zague com as envenenadas como se aquela fosse a última festa de suas vidas - na maioria das vezes era! Ao pedestre e ao ciclista que se tornaram motoqueiro da noite pro dia, faltou a educação no trânsito, educação que eles aprenderiam por meio de multas e apreensão de veículos pelos órgãos competentes.

Pela orla do Açude Grande, grandes motos faziam seus passeios no espaço reservado à caminhada dos pedestres. Motos nas calçadas, em frente de garagens, em alta velocidade... Vícios herdados dos ciclistas!? Os pedestres não ficávamos atrás. Concorríamos no direito de circular por onde e como quiséssemos. Na avenida Demerval Lobão, o lobo vivia a solta nos passeios desavisados da selvagem floresta urbana local. Na Santo Antônio era um milagre alguém respeitar ou conhecer a placa de limite de velocidade.

A modernidade dos engarrafamentos já chegara na avenida José Paulino: carros, motos e gente disputam espaços privilegiados de sombra e estacionamento no centro comercial de Campo Maior. Cuidado: quem trafegava sem atenção pela avenida Dirceu Arcoverde poderia tombar no calçamento de pedra e cair nas águas sujas do Açude.

Sinal vermelho: pare e pense!

Os compromissos com o comércio ou a prefeitura – nossas principais fontes de emprego na época –  nos obrigavam a aventurar-se pelo trânsito atemporal nas manhãs hebdomadárias do município. Asfalto existia, mas os buracos teimavam em morar nas ruas da cidade. Semáforos havia e os poucos que havia atrasavam a população, diziam as pessoas de bem. Há perigo na esquina, diz a canção. O controle de tráfego e as irregularidades de todos nós corriam de mãos dadas e soltas pelas ruas. Roubo de veículos eram frequentes; motoristas desabilitados uma constante.

As blitz eram (são) tão raras quanto usar capacete, cinto de segurança ou desconhecer cidadão que não tenha perdido um amigo no trânsito de sangue da cidadezinha. O pedestre que se preze ao andar pelas ruas e calçadas na insegurança pública que é o asfalto quente das cidades brasileiras.

E assim chegamos ao século 21 no trânsito de Campo Maior: livre para corridas, perigo e acidentes; sem sinalização e sem urbanidade necessárias; sinal vermelho para a imprudência e imperícias de criaturas humanas motorizadas.

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