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  16:49

FEVEREIRO POÉTICO

 

LÁ VEM FEVEREIRO

Lá vinha chegando fevereiro, gingando e cantando ao sabor do vento e trazendo pela mão uma chuvinha mansa de fim de tarde. Trazia também promessas de vida, de festa, de alegria. Havia uma energia no ar, que eletrizava os transeuntes. O sol ainda teimava em sobressair-se através das nuvens pesadas que anunciavam uma chuva forte para mais tarde. Era segunda feira. Marina acabara de sair de seu trabalho, e sentia as pernas cansadas, passara o dia todo em pé no seu trabalho de balconista.  Felizmente o ônibus não demorou muito e para sua sorte ela encontrou um lugar para sentar. Suspirou aliviada e se preparou para os 40 minutos que levaria até chegar em sua casa. Fechou os olhos e tentou relaxar. De repente percebeu que não só as pernas estavam cansadas, também os pés, as costas, enfim, todo o seu corpo estava cansado.

 

Aos poucos sentiu os músculos relaxando, e o sangue esfriando, pode então se concentrar em seus pensamentos e esquecer um pouco o seu corpo que reclamava por descanso. Sabia que descanso era tudo o que não teria ao chegar em casa. Preferiu não pensar na sua vida e no que a esperava logo mais, para não sofrer por antecipação. Relaxou, concentrando-se na conversa do casal ao lado que trocava juras de amor, e planejava o carnaval que já se avizinhava. Quando foi a última vez que pulara carnaval? Ou que fora a alguma festa? Ou que dançara em algum evento? Não se lembrava, tentou forçar a memória para precisar ao certo quando fora... Antes que conseguisse recordar, uma briga entre o casal ao lado lhe despertou a atenção. Há pouco menos de dez minutos estavam felizes jurando amor eterno e agora ali, numa briga feia. Marina não percebera o motivo da briga e preferiu ignorar os dois, felizmente já estava chegando a seu destino. Levantou-se do assento e apertou o botão solicitando parada.

 

O ônibus parou bruscamente e Marina saltou aliviada. Chovia forte agora e ela não levara agasalho. Andou rapidamente os duzentos metros que a separavam de sua humilde residência, mas não conseguiu impedir que ficasse encharcada até os ossos. Entrou apressada e viu, logo ali sentada na sala, a sua realidade. O marido estava ainda na cadeira de rodas, desde que sofrera aquele trágico acidente, há cinco anos atrás era dependente dela para quase tudo. Além do marido as duas filhas, uma de seis e outra de oito anos esperando para que as cuidasse e alimentasse. Beijou os três amores de sua vida e tentou sorrir, afinal eles esperaram por este sorriso o dia todo, ela não poderia negar-lhes este prazer. Após afagá-los passou direto para a cozinha para preparar-lhes o jantar, que serviria de almoço também no dia seguinte, tanto para eles, como para ela que levaria a marmita para o trabalho. Saía sempre antes das seis.

 

O jantar era um momento de descontração e alegria, onde eles conversavam tudo o que fizeram durante o dia. Ali não havia brigas ou desentendimentos. Ela não falava de suas preocupações, tristezas ou cansaço. Procurava ouvir atentamente as filhas e responder a suas inúmeras indagações. Só após colocá-las na cama é que ela voltava para a cozinha para fazer a limpeza e organizar a bagunça feita por elas, na sua mais perfeita inocência pueril. Ali também o marido a esperava, para só então conversarem sobre suas expectativas e preocupações. Em seguida ela o ajudava a tomar banho e a colocá-lo na cama. Era quase meia noite quando finalmente Marina conseguia tomar o seu banho, o tão esperado banho, que estava longe de aliviar seu cansaço, agora bem maior do que quando saíra do trabalho no final da tarde. Enquanto tomava banho seus pensamentos voltaram ao assunto do carnaval que se aproximava a galope. Seu coração transbordava de dor.

 

Duas lágrimas grossas se misturaram à água do chuveiro. Depois outra e mais outra. Até secarem o poço fundo de sua angústia. Ela só tinha 28 anos! Sofria muito, sofria pelo marido, que tivera sua juventude e sua alegria ceifadas tão cedo! Sofria pelas filhas, tão pequenas e tão dependentes dela.  Sofria por ela mesma, que não tinha tempo nem para chorar suas dores.

 

Terminou o banho, vestiu seus trajes de dormir e vestiu também um sorriso que daria ao marido, era tudo o que ele podia querer dela nas atuais circunstâncias. Aconchegou-se em seu colo, ou melhor, aconchegou-o no seu próprio abraço e tentou dormir. Dali a pouco teria que despertar para recomeçar tudo de novo. E que viesse esse e outros fevereiros, eles a encontrariam ali, firme e confiante na vida e em dias melhores. Ana Maria Cunha   (Conto publicado no livro FEVEREIRO POETICO,2016)

 

Ana Maria Cunha